segunda-feira, 10 de abril de 2023

Quando a moeda global era latinoamericana

Real cunhado em Potosi, atual Bolivia
Real cunhado em Potosí, atual Bolívia
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs







Uma falsa visualização apresenta a América Latina fadada a ocupar uma posição secundária no concerto das nações. Para isso contribuíram – e seguem contribuindo – governos e ditaduras de esquerda, por vezes até histriônicas, mas sempre empobrecedoras, cultural e economicamente.

Nessa minimização da importância real do nosso continente acaba pesando também o fato de ser um imenso conjunto maioritariamente católico, onde residem a quase metade deles no mundo.

Mas muitos sintomas ou pequenos fatos nos revelam que o continente possui recursos que em momentos históricos foram bem aproveitados e lhe deram uma importância inesperada.

Quem olha para nossas desordens econômicas tomará uma surpresa sabendo que da América do Sul saiu a moeda que exerceu sua hegemonia no comércio mundial durante mais de 300 anos, como documentou “La Nación” em extenso trabalho.

Ela precedeu a libra esterlina de ouro britânica e serviu de modelo para os americanos desenvolverem seu próprio dólar, hoje a moeda hegemônica.

Minas de Potosí no tempo español
Minas de Potosí no tempo español
A moeda chamava-se “Real de a oito”, era feita de prata americana e foi a primeira a se internacionalizar na história moderna. Ela foi cunhada pelo Império Espanhol em meados do século XVI, que incluía o Brasil pela União Ibérica (1580–1640), e foi produzida com a abundante riqueza da América.

Mesmo após o declínio do império manteve-se como uma das moedas mais competitivas do mundo, estendendo seu domínio até o final do século XIX.

A moeda foi criada pelos Reis Católicos da Espanha em 1497, após completar a expulsão dos mouros da península ibérica e o início da evangelização da América, com o decreto dito “Pragmática de Medina del Campo” que estabeleceu o Real de prata, como unidade de pagamento.

Nos reinados de Carlos V da Alemanha e Felipe II, a meados do século XVI instituíram o “real de a oito” com a prata que provinha especialmente do México e de Cerro Potosí, atual Bolívia.

“Por volta de 1535 foram criadas as primeiras casas da moeda na América – local onde se cunham moedas – em México e Santo Domingo. Com a grande quantidade de prata americana, os reis católicos criaram o “real de dois”, o “real de três”, o de quatro... porque a melhor forma de movimentar a prata é com moedas”, explicou à BBC Mundo José María de Francisco Olmos, professor de história da Universidade Complutense de Madri e pesquisador em numismática.

“Depois desse pequeno caos de peças, foi feito o ‘real de oito’, multiplicando por 8 o real dos Reis Católicos", especifica o professor.


Real de 8 de 1765
Real de 8 de 1765
Fizeram também a Onça, a moeda de ouro, e com o ‘real de oito” formavam um sistema bimetálico em que o valor ficava ligado diretamente a matéria preciosa com que era feito.

Foi um rio de ouro e prata que entrou na Europa, e “todos concordavam que era uma prata muito boa, e se tornou a moeda de referência em todos os outros países”, acrescenta José María de Francisco Olmos.

No século XVIII, o “real de a oito” consolidou-se como moeda global após a Guerra da Sucessão Espanhola. Esse conflito internacional opôs as potências europeias e a Espanha concentrou-se nas suas possessões na América assumiu o controle da Real Casa da Moeda do México e mandou modernizar as suas máquinas de cunhagem.

O “real de oito” passou a ser produzido com um novo design exclusivo das colônias americanas, também conhecido como “columnaria”, pois tinha impressa as colunas de Hércules e os dois hemisférios do planeta.

O Holey Dollar, foi um real furado adotado pela Australia,  British Museum. O centro dava uma moeda de menor valor
O Holey Dollar, foi um real furado adotado pela Austrália,  British Museum.
O centro dava uma moeda de menor valor
A nova versão foi bem-sucedida na bacia do Pacífico, porque “nos séculos XV e XVI, o comércio atlântico era importante, mas a partir de um certo momento, o comércio do Pacífico passou a ser tão ou mais importante. Tinha a América, no centro, com suas minas e moedas, que tanto podiam ir para o Atlântico quanto para o Pacífico”, especifica o historiador.

O “real de oito” foi aceito como moeda própria na China, Japão, Coreia e Índia, entre outros.

Alguns especialistas em numismática - disciplina que estuda moedas e medalhas - a consideram uma das de maior esplendor e beleza já cunhadas. Ela também foi aceita nos domínios do crescente império britânico durante os séculos XVIII e XIX onde foi popularizada como o “pillar dólar” (dólar dos pilares).

Na Austrália no início dos anos 1800, era chamado de “dólar holey” e havendo escassez de moeda britânica, as autoridades ordenaram a importação de cerca de 40.000 reais espanhóis, que usavam perfuradas.

Dólar español, ou Real de 8  cuñado em 1588 em Segovia, sob o reinado de Felipe II
Dólar español, ou Real de 8  cunhado em 1588 em Segóvia, sob o reinado de Felipe II
Também era conhecida como “dólar espanhol” muito popular nas treze colônias britânicas na América do Norte, onde era mais fácil de obter do que as próprias moedas britânicas.

Após sua independência do Reino Unido na década de 1770, os EUA conceberam sua própria moeda, modelada na moeda imperial espanhola. Os revolucionários americanos emitiram papel-moeda garantindo-o com o “real de oito” espanhol.

Ainda após nascer o dólar americano em 1785, o “dólar espanhol” seguiu vigorando até 1857. O símbolo do dólar ($) provém das duas colunas de Hércules do “real de oito”.

A independência dos antigos vice-reinados espanhóis da América marcarão o início do fim da moeda, perdendo a Espanha o controle das minas de prata americanas e de suas casas da moeda.

Porém, ela ficou competitiva até o final do século XIX. O dólar canadense, o tael chinês, o won coreano e, claro, as moedas das repúblicas americanas que nasceram da independência da Espanha foram baseadas em seu modelo

A bordo de galeões espanhóis, sofrendo até saques dos piratas, o “real de oito” cruzou o “mundo e os mares” ao longo de três séculos como moeda precursora da economia global.