segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Jornal de papel derrota Internet

"Quem matou l'Unità"? Parece novela de Agatha Christie, mas não é.
O "assassino" foi o desinteresse dos leitores pela imprensa de esquerda.

Fala-se muito que a Internet está eliminando a imprensa escrita. A comunicação virtual tem suas vantagens, sem dúvida. Mas será essa afirmação tão absolutamente verdadeira?

Seja-me permitido discordar, ainda que parcialmente. Acredito que de tanto carregar o viés esquerdizante, há décadas a mídia escrita vem praticando o seu haraquiri.

A sistemática distorção dos fatos num sentido esquerdizante afastou-a de seus leitores naturais. A mídia foi ficando como um disco voador que sobrepaira as massas humanas sem que estas consigam mesmo discernir suas formas ou intenções.

Porém, para nossa desgraça, não havia alternativa: o macro-capitalismo publicitário era a única fonte de informação escrita, ou audiovisual por rádio ou TV.

Mas, com o aparecimento da Internet, foi uma verdadeira corrida dos leitores.

- Para onde?

- Para mais do mesmo?


Não, para os sites conservadores ou para os que fugiam do figurino esquerdizante do macro-capitalismo publicitário.

Os exemplos são incontáveis, mas eis um, mais recente.

O jornal “l'Unità”, do comunismo italiano, está fechando, como noticiou a UOL. Ele foi fundado, nada mais, nada menos, que por Antonio Gramsci, o pensador mais avançado, sutil e inteligente, aquele cujos maquiavélicos conselhos levariam o anticatolicismo marxista à vitória segundo os ideólogos ainda acham acham. E não só na esquerda!

L’Unità surgiu em 1924 e, 90 anos depois, em 1º de agosto de 2014 publicou a sua última edição. A Nuova Iniziativa Editoriale (NIE), sua editora, está em liquidação desde 11 de junho, por decisão dos acionistas.

Argumento único e decisivo: falta de leitores.

O último exemplar do jornal do maquiavélico Gramsci.
As páginas não expostas saíram em branco: não tinham leitores e esgotaram as ideias
A última manchete do jornal serviria para Verdi compor uma ópera: “Mataram l'Unità”. A edição final teve 24 páginas: três sobre o fechamento, uma convidando os últimos fiéis a visitar sua biblioteca eletrônica, e as demais em branco. Sem pensamento, é bem verdade, mas também para que pensar, escrever e editar? Para ninguém ler por desinteresse?

“Fim de carreira. Depois de três meses de luta, conseguiram: mataram l'Unità”, pranteou o comitê de redação. “Os trabalhadores ficaram defendendo sozinhos um título histórico”, acrescentou. Faltou dizer que hoje as classes trabalhadoras votam na direita.

O órgão comunista sobreviveu momentos terríveis, como a era fascista ou a II Guerra Mundial. Mas entrou em agonia após o colapso da URSS.

As ideias comunistas, mesmo no seu faceiro invólucro gramsciano, não interessavam mais.

L’Unità fechou brevemente em 2000 e reabriu graças a acionistas privados. Algo parecido com a crise do Libération de Paris, o jornal das barricadas de Maio de 1968 sustentado hoje por grandes banqueiros, contra os quais outrora deblaterava.

As vendas de l’Unità atingiram pouco mais de 20 mil exemplares diários e o jornal “jogou a toalha”.

Sem capitais para sustentar a folha anticapitalista, os jornalistas trabalharam sem receber nos últimos três meses. Nem os partidos de esquerda no governo, nem o primeiro-ministro Matteo Renzi, dono de parte das ações, vieram em seu auxílio.

Em sentido contrário, há um jornal cuja orientação eu não partilho, mas sempre que o via exposto nos quiosques de Paris, tratava-o com respeito. Esse jornal não se descolou do público.

Le Canard Enchaîné: um héroi vitorioso berrando contra aquilo que a grande mídia glorifica. Assim virou o jornal que não descolou de seu público e seu público não descola dele.
Le Canard Enchaîné: um héroi vitorioso berrando contra aquilo que a grande mídia glorifica.
Assim virou o jornal que não descolou de seu público e seu público não descola dele.

Seu nome faz rir: Le Canard Enchaîné, isto é O Pato Acorrentado. É um jornal satírico de origens anarquistas que evoluiu para o centro.

Ele sobreviveu às duas guerras mundiais, à ocupação, à censura, aos ataques e espionagens de governos de direita e de esquerda, às manias da moda, às tormentas econômicas e, por fim, gloriosamente, à Internet, como observou O Globo (31.07.2014).

Com 99 anos, o “jornal satírico que sai às quartas-feiras” — como ele se ufana de autodefinir-se — acabou ficando a publicação francesa mais respeitada e venerável do presente.

Tem apenas oito páginas, sua diagramação não mudou desde o primeiro número há um século: só usa o preto, o branco e o vermelho; privilegia os textos e custa poucos reais. Recusou todas as modernizações, e o público francês, ao qual não falta verve nem mordacidade, reconheceu o talento do marreco furioso.

Canard só sai em papel, nada de edição em linha. Vende quase meio milhão de exemplares por número, enquanto os títulos famosos definham.

É também uma potência econômica, explica O Globo: tem mais de 100 milhões de euros em caixa, aplicados unicamente em títulos conservadores, de longuíssimo prazo, enquanto os outros - os pomposos, os célebres, os esquerdizantes -  vivem implorando créditos que governos e bancos lhes concedem com reticências cada vez maiores.

Le Canard Enchaîné: um herói vitorioso e desapiedado contra o pântano imenso da Internet
Le Canard Enchaîné: um herói vitorioso e desapiedado contra o "ciber-pântano"
Última esquisitice de exceção – ou suprema prova de sucesso –, o jornal vive exclusivamente da venda em bancas e assinaturas. Nunca publicou anúncios, por achar que a propaganda compromete a sua independência.

Canard também quer dizer notícia deliberadamente falsa e, ainda, jornaleco, publicação de segunda categoria. E, ainda por cima, o marreco acorrentado fica frenético.

É um trocadilho que indica a sátira aos pomposos, o ataque engraçado à feira de vaidades da política, da economia, dos artistas, das modelos, dos desportistas, dos estilistas e dos “famosos” que entulham as páginas dos nossos jornais, rádios, telas de TV e sites da Internet.

Pense-se dele o que se pensar, discorde-se como se queira – como é o meu caso –, cumpre reconhecer que o Canard não se afastou de seus leitores de carne e osso, deu espaço ao humor francês – ao francês real e concreto como ele é.

Em reportagens de rolar de rir para o gosto de O Globo, de agressividade ímpar, o jornal das reportagens e cartuns acaba de publicar cem páginas sobre os humoristas da televisão, do cinema, do teatro e da Internet. Nelas, O Pato Acorrentado diz muitas coisas que o parisiense comum pensa e que os jornais sisudos, mas descolados dos leitores, não dizem.

Confesso que tenho vontade de fechar logo o artigo. Bem gostaria estar em Paris e dar uma olhada de passagem na inteligência desse jornal do papel e do mundo real. E com o qual eu não concordo!

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